O último texto foi a chuva que trouxe. Hoje começo com uma frase que ouvi dentro do ônibus dois ou três dias atrás, enquanto outra chuva ameaçava começar a cair. Não virou temporal, foram só pingos e leves e nada mais. Eis a frase de uma senhora: "Podia pelo menos esperar eu chegar em casa pra começar a chover". Não vi o rosto da moça nem o tipo físico. E a chuva nem me interessava tanto no momento. Ainda estava com a janela aberta, não me incomodava em nada. Mas a frase ficou na cabeça.
Já molhei demais na última postagem, portanto dessa vez o assunto é a a voz da mulher ressoando na varanda. Fiquei me perguntando: quem seria aquela mulher a quem a chuva devia esperar chegar em casa para começar a cair? Por que logo ela? Seria uma escolhida pelo céu para comandar o tempo? Teria ela uma varinha mágica que, quando apontada para o céu, o tempo mudava conforme sua vontade e naquele dia a tal varinha estava em casa e uma criança brincando com os poderes mágicos? Com quem exatamente ela falou isso? Será que ela estava presente na criação do universo e aprendeu a criar a chuva? Tinha feito chapinha naquele dia? Ou será que era só uma senhora muito individualista? Vou escolher a última opção...
Já ouvi essa mesma frase inúmeras vezes saindo da boca de minha progenitora, não nego. Mas só quando essa voz disse isso reparei na indivualidade que ela traz. A chuva deve esperar que ela esteja protegida, já quanto aos demais... Molhem-se, fiquem ilhados, inundem suas casas, afoguem-se com cada uma das gotas, percam seus bens depois de temporais, fiquem resfriados e gastem com remédios, percam o incrível e caro resultado da chapinha marcada no salão há 15 dias. Entendi tudo isso naquela frase. Me senti ameaçado e preocupado. Será que foi comigo? Não, não exatamente. Foi comigo e com o resto do mundo. Mas, cara senhora desconhecida, fique sabendo que o resto do mundo, em algum momento, já desejou o mesmo pra ti.
Existem situações em que quase qualquer um esquece que o resto do mundo existe e só pensa na própria vida, ainda que isso interfira na vida dos demais. Indiretamente. Quantas vezes um barulho na casa do vizinho incomoda a ponto de querermos explodir a casa ao lado? Coitado, só está montando uma nova estante comprada em 12 vezes. Por que um acidente com um parente próximo e não com o chefe rabugento do escritório? Logo o chefe rabugento que não dirige embriagado como aquele parente... É a privação da felicidade alheia para nossa própria felicidade.
Queremos que o mundo faça tudo à nosso favor, que embeleze nossa vida, ainda que, volto a repetir, nem lembremos que há necessidades em volta no nosso umbigo. Não queridos, se alguém pode viver com muito conforto, viva. Mas que esse conforto não venha da infelicidade alheia. Ou que venha, se você definitivamente não é um humano direito. Quem sou para saber o que é agir corretamente ou não... Mas desconfio do que seja certo e do que seja errado. As aulas de Moral servem para alguma coisa. A vida serve para alguma coisa. As vidas servem!
Volto a imaginar a senhora da frase no ônibus, a toda poderosa, senhora tempestade... Será que ela se sentiria mal em saber que alguns não conseguiram sobreviver àquela que poderia virar tempestade? Sentiria pena? Mostraria tristeza? Compaixão? Diria "uma pena, coitado, por que não me mandou em seu lugar"? A mesma individualista, momentos depois pode se mostrar a mais "grupal" das criaturas, que só vive em comunidade e interage com todos, tratando a todos como trataria a si própria... Nossos personagens, nossas faces más e boas...
São momentos de ódio profundo, de alegria extrema, de individualidade, de companheirismo, de sim, de não, de posso, de não posso, de simplicidade, de vaidade... Pessoas diferentes uma das outras e inúmeras diferenças dentro de si mesmas... Momentos.. como cantava Raul "se hoje eu sou estrela, amanhã já se apagou; se hoje eu te odeio, amanhã lhe tenho amor... eu sou ator"
Não dói pensar na frase da senhora, confesso, foi uma frase tão simples, sem pensar muito... só segui até meu ponto, fechei a janela, dei o sinal, o ônibus parou e desci. Nada me aconteceu, acho que a chuva resolveu ser boazinha comigo... não molhou tanto.
Confesso.. não pensei nos que ainda ficaram no ônibus.
Acabo de me preocupar, o que será que aconteceu? Ah, não ouvi notícias.. acho que posso deitar tranquilamente a cabeça no travesseiro.
Já nossos companheiros do Executivo... não sei não, hein... vejo notícias todos os dias nos jornais...
Até a próxima. Bons ventos.